Por: Victor Loureiro
Seus pais costumavam passar
uma parte da noite de Natal na casa de Dona Maria, uma portuguesa de sotaque
tão carregado que não dava para acreditar que aquela era sua língua mãe.
Mas isso pouco importava, pois
o que era oferecido à mesa farta daquela casa com varanda generosa e que ficava
em uma das esquinas da Rua Amaral Peixoto permaneceria para sempre em sua
memória gustativa. Tratava-se do melhor bacalhau que iria provar na vida.
A dona da casa, responsável
por essa iguaria, vestia sempre preto e ostentava um crucifixo dourado em seu
pescoço coberto por uma gola alta, como exigia sua fidelidade católica.
Pouco antes da meia noite,
ele, seus pais e seu irmão, caminhavam por uma Nova Iguaçu inimaginável nos
dias de hoje, seguiam até a Catedral de Santo Antônio, que ficava em frente à
cancela, para assistirem à Missa do Galo.
Nessa época, nossos olhos eram
providos de uma espécie de raio-X que conseguia atravessar o limite dos dois
lados da linha férrea, hoje impossível de ser transposto, devido à construção
de um muro de iguaçunita. Isso mesmo, iguaçunita, um mineral extraterrestre que
tem a propriedade de enfraquecer os poderes dos habitantes, os quais nunca mais
viram a cidade inteira, nem mesmo os trens passando.
Era como se as maçãs nascessem
já divididas ao meio. Como se as bonecas russas não coubessem em sua natureza
múltipla e contínua de guardarem-se em si mesmas. Como se o significado das
palavras dissolvesse seus próprios signos. Não há pior maneira de matar a alma
de um povo do que fazê-lo esquecer. Esquecer que as pontes não devem aniquilar
a beleza e a importância do rio. Esquecer que, mesmo sendo bicho, temos a
capacidade de conviver com nossos limites inatos de animais agressivos e
alcançar o firmamento cognitivo de quem conquista uma paz social mínima onde a
iguaçunita não tenha o poder de enfraquecer nossas humanidades.
Hoje só nos resta o senso de
humor para tentar escapar a toda essa lógica perversa de rezar a missa do galo
mais cedo, porque perto da meia-noite o galo engasga de medo e não canta.
E foi numa festa infantil,
depois de muito conversar sobre essa terra tomada de maçãs nascidas pela
metade, de pontes construídas sobre rios mortos, de zumbis sem memória e afeto,
de um povo que se esqueceu de si próprio e que parece estar entre as
personagens do filme “A festa”, que só consegue ver as pernas das pessoas
dançando, no andar de cima, divertindo-se, comendo, bebendo, mas não consegue
participar da farra, que ele ouviu do avô da aniversariante uma frase que
resumiu toda essa situação vexaminosa:
“É, meu amigo, do jeito que a coisa está, até os
galos estão cantando mais cedo!”