Lembranças culturais de um Brasil ameaçado
Neste Brasil derepentemente
idiotizado por esta avassaladora paranoia eleitoral à direita, não há mesmo
espaço mental para ninguém comemorar, por absoluta ignorância histórica e
cultural, os 90 anos de um grande mestre do cinema brasileiro: Nelson Pereira
dos Santos, que nos deixou em abril aos 89 anos.
Seu esquecimento não é único.
Iguala-se ao de tantos outros brasileiros notáveis cuja lembrança se evaporou
em razão de nossa amnésia coletiva. No caso de Nelson, explica-se: esse
esquecimento (ou desconhecimento?), excluindo uma minoria de cinéfilos. Nelson
era, por ação e pensamento, um socialista, devotado à construção de uma
sociedade justa e igualitária. Um comunista que se iniciou na arte
cinematográfica produzindo documentários para a seção paulista do velho
Partidão. Com a iminência de Bolsonaro presidência da República, Nelson talvez
escapasse por sua idade avançada. Fosse ele mais novo, seguindo o receituário
fascista do candidato a xerife, seria fatalmente obrigado a optar: ou dá o fora
do país ou vai para a cadeia.
O Brasil que Nelson roteirizou
genialmente através de sua câmera, o Brasil de “Rio 40° Graus”, “Rio Zona
Norte”, “Vidas Secas”, “Memórias do Cárcere”, o Brasil desse paulistano nascido
em 1928, é um Brasil inexistente na cabeça de brucutu que promete apertar o
gatilho contra todos aqueles que defendem nossa precária democracia. Tão
precária que permite a existência de quem pretende destruí-la.
Sérgio Porto
A lembrança permanente,
garimpada em regime de horário integral, nos ajuda a ir tocando a vida neste
país que está sendo violentamente desmontado sobretudo no plano cultural.
Sérgio Porto – penso que a maioria das novas gerações o desconhecem – é uma das
lembranças que nos ajuda a viver na recordação de um passado que hoje nos
parece remotíssimo. Não. Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta morreu em outubro
de 1968. Há precisos 50 anos. Quando de sua morte escrevi um longo texto aqui
mesmo no CL. Tinha então 24 anos. O encontro desse texto me salvou. Me deu
pronto um pouco de sua lembrança, num trecho que aqui reproduzo:
“Ao morrer Sérgio Porto,
desaparece do cenário da vida, que ele tornou tão alegre, um dos maiores
talentos surgidos nos últimos vinte anos na imprensa brasileira. Um talento
literário que o jornalismo de um certo modo dispersou em proveito do
musicólogo, para quem a história do samba e do jazz não guardava segredos, e do
humorista de ‘verve’ insuperável que ele foi.
Do
ponto de vista literário, ao fazer a crônica de sua cidade com inigualável
graça e de agilidade estilísticas, Sérgio iguala-se a João do Rio. Foi ele o
pintor de um grande mural carioca, com uma riqueza de cores que sua
sensibilidade captou como ninguém. Em vida, tão ou mais verdadeiro que sua obra
espalhada em todos esses anos de jornalismo, o seu comportamento revelou um
temperamento gozador e uma inteligência de notável acuidade crítica, virtudes que
fizeram de Sérgio o mais digno representante do espírito carioca. A mesma alma
encantadora das ruas se valeu desse espírito, no exercício nervoso e exaustivo
da crônica diária, pois Sérgio era um escritor de ofício, um trabalhador
incansável. Agora mesmo, na reportagem de sua morte, os jornais noticiaram que
Sérgio nem na hora de almoçar se libertava da máquina de escrever, fato que vem
provar uma frase que ele repetia sempre: ‘Eu sou o preguiçoso que mais trabalha
no Brasil’”.