Vicente Loureiro
Assim como viver ou morrer, morar só tem sujeito. Não possui objeto direto ou indireto. Pode significar, de acordo com os dicionários, habitar, fixar residência ou moradia em algum lugar. Até mesmo se confunde com viver de acordo com algumas regras, condições ou situações específicas. É o oposto de vagar, de estar ou ser errante. Representa também o ato de abrigar-se. Talvez um dos sentimentos mais atávicos do ser humano e essencial a uma vida digna e minimamente segura.
No entanto, ainda está longe de ser um direito humano, urbano por excelência, respeitado de fato em nosso país, onde o déficit habitacional beira os 8% (aproximadamente 5,8 milhões) dos imóveis destinados à moradia. Isso, sem considerar que um terço desse estoque imobiliário, perto de 24 milhões, possui carências de infraestrutura urbana ou de natureza edilícia. Morar decentemente é verbo que não se conjuga na primeira pessoa do presente do indicativo para 30 milhões de brasileiros. Desafio com uma taxa de renovação de demanda sempre maior do que a da oferta.
Um rápido exame sobre os números do Minha Casa Minha Vida, programa habitacional agora chamado Casa Verde Amarela, criado para dar conta de um déficit na época de sete milhões de moradias, dez anos depois, e com cerca de quatro milhões de habitações entregues, um recorde histórico, permaneceu no mesmo patamar. Ou seja, no Brasil se produziu mais demanda por casas do que se conseguiu construir. O resultado dessa diferença alimentou a expansão precarizada e informal das cidades. Os Rio das Pedras da vida não nasceram e se multiplicaram por acaso. Nem algumas de suas casas desabam por conta própria.
Há mal feitos para todos os gostos e tamanhos nos pedaços de cidade onde reina o "cada um por si e Deus, dependendo do lugar a milícia, por todos". Há casos de produção de moradias realizada por promotores imobiliários associados ao crime organizado e cuja possibilidade de suas obras virarem pó, com vítimas fatais, é diretamente proporcional ao seu modo ilegal e irresponsável de agir. Como há também os mal feitos da autoconstrução, sem a devida assistência técnica de profissional habilitado, fruto do casamento da necessidade por um bem essencial com o voluntarismo inconsequente do faça você mesmo. Ambos produtos da oferta insuficiente de habitação social e da ausência de regulação e controle por parte do poder público. Claro que a chance de dar ruim deixa de ser só jogo do azar.
Com um modelo de desenvolvimento que se notabiliza mais por excluir do que por acolher, com política habitacional que muda de rumo tanto quanto de nome e, ainda, com governos municipais que gostam mais dos objetos do que dos sujeitos fica quase impossível levar o morar para todos. Sem compromisso de inclusão, sem prover habitação em quantidade e diversidade necessárias, sem plantar serviços públicos onde ele é descaradamente ausente, não se consegue anular a força do crime nem conter a velocidade do desespero na reprodução das cidades. Construções inadequadas, informais e de risco ficam de pé, mas, às vezes, caem. Principalmente onde o estado, por omissão, prefere não ver e, quando aparece, é para lamentar o mal feito desabado, culpando, é claro, o passado e esquecendo-se que nesses lugares apartados, o futuro costuma ser cópia ruim e ampliada do que hoje neles se produz e reproduz. O verbo morar não se conjuga onde o estado é sujeito oculto e o cidadão não figura como objeto direto de suas ações. Por isso neles, infelizmente, o morar segue sendo intransitivo.
*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.