Vicente Loureiro
As hipotecas vencidas e não honradas naquele período, além de tomar-lhes a moradia, corroeu-lhes o emprego e a vida familiar. Perderam tudo. Enxergaram nas atividades econômicas penduradas nas estradas a chance de tentar um recomeço. Na verdade, uma escolha de opção única ou quase. Estando muitos deles já na idade de se aposentar e sem perspectiva de obter um novo emprego fixo, tornaram-se mão de obra barata e descartável a serviço esporádico de centros de distribuição, de colheitas de produtos agrícolas, entre outras ocupações eventuais e de baixa remuneração.
Esse novo jeito de morar, pois eles mesmos definem-se como “sem casa”, mas não “sem-abrigo” ou lar, faz uso da infraestrutura de campings ou de locais onde é permitido estacionamento de trailers ou vans nas cidades. É onde eles praticam alguma solidariedade, confraternizam-se em festas improvisadas, constroem amizades efêmeras e vivem, em suma, o outro lado do sonho americano. É ao mesmo tempo produto da crise das hipotecas, provocada por um mercado sem regulação, e vítimas de um estado omisso, indiferente a um contingente de pessoas que não receberam auxílio governamental. Não têm possibilidade de se aposentar e, muito menos, de custear o auxílio-saúde. Viraram nômades como os beduínos, levam a vida em trânsito tirando de onde conseguem seu sustento.
Este fenômeno foi retratado inicialmente no livro reportagem de autoria da jornalista Jéssica Bruder. Durante três anos, ela conviveu com esses novos nômades, retratando seus hábitos, dores, orgulhos e problemas. Captou momentos de liberdade e realização e os de solidão e angústias. Fez sucesso e virou filme intitulado “Nomadland”, em tradução livre: “Terra dos Nômades”. Ganhou 3 Oscars em 2021. O de melhor filme, direção e de melhor atriz, entre outros prêmios. Misturando personagens fictícios e verdadeiros, o filme transita entre realidade e ficção. Testemunha o impacto de uma das crises do capitalismo na vida das pessoas diretamente atingidas. Faz pensar: onde questões como a desregulamentação das relações de trabalho e as ausências do estado mínimo podem, por exemplo, nos levar?
Fico imaginando o alcance de tais impactos no Brasil, um país que parece não gostar de viver sem crises. Como trataremos os sem-teto desses tempos bicudos? Onde passeios viraram camas e as marquises cobertor. Temo que a indiferença das nossas elites nos leve a adotar o exemplo das grandes metrópoles da Índia, onde pessoas passaram a morar nas calçadas e tê-las inclusive como o endereço oficial e reconhecido. Quem sabe mais um algarismo adicionado ao CEP dê conta de incluir os moradores do relento, oferecendo-lhes um endereço em lugar certo e também sabido, enquanto seguimos promovendo um modelo de desenvolvimento que insiste em não se importar muito com os que ficam para trás.
*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.