Vicente Loureiro
Muito tem se falado de cidades inteligentes. Acredito que para se tornar de fato uma “smart city”, a cidade deve primeiro se olhar no espelho. Afinal, ele sempre contém mais do que os olhos podem ver. Além de ter o dom dizer, na lata, a verdade. Que espelho seria esse capaz de refletir com precisão o espaço físico de uma urbe com os impactos dos seus fenômenos antropológicos e naturais?
Seria de um metal super polido e com dimensões que permitisse a cidade ver a si mesma como os outros a veem. Podendo, aqui e ali, corrigir suas imperfeições na busca incessante de aperfeiçoar sua imagem. Tomando cuidado para não cair na tentação do mito de Narciso e, muito menos, deixar que o espelho se quebre, pois pode trazer maus presságios. Ah, e nunca deixar de cobri-lo em casos de tristeza profunda.
São lições da antiga relação dos homens com os espelhos que as cidades devem tomar no afã de se tornarem inteligentes. É necessário conhecer a si mesmas para ficarem melhor e mais capazes de cuidar de cada detalhe sem nunca perder a visão do todo. Para tanto, elas precisarão de suas imagens retratadas com fidedignidade, a altura de suas dimensões e complexidades. Isso pode ser alcançável através de um programa permanente de gestão integrada de informações georreferenciadas. Um grande espelho, em tempo real, que os avanços da tecnologia colocaram diante delas e que ficam mais precisos, abrangentes e baratos a cada dia.
Ser inteligente é saber de si, de seus defeitos e virtudes. Onde estão localizados os pontos obscuros ou invisíveis da sua imagem. E também aqueles a realçar, pois sintetizam as potências do carisma do seu reflexo. O primeiro passo é poder mapear o que pode ser visto, para servir de base a todas as leituras do mapa que se possa fazer ou incrementar, independente do leitor e das lentes usadas. Falo de uma base cartográfica digital: uma foto instantânea, mas atualizável da imagem física da cidade, escarafunchada a laser.
Sempre enriquecida, com raio-x preciso e georreferenciado, de tudo aquilo que foi ou será sobreposto a imagem, no caso das cidades, sobre o seu território original. Tudo devidamente cadastrado e codificado. Alcançando toda e qualquer edificação, entendendo-as como parte integrante e indissociáveis de um grande mosaico construído e em permanente mudança. Cada uma delas, com um código próprio e perene. Uma espécie de CPF dos imóveis. Isso não só é possível como talvez se transforme em um grande passo na redução da burocracia e custos de gestão e transferência deles, incluindo os cartoriais.
Uma imagem refletida com precisão numa boa a base cartográfica pode receber, através da digitalização de dados, as diversas interferências do homem sobre o ambiente construído e natural das cidades. Normalmente abrigadas nas políticas públicas setoriais, mas que, se sobrepostas e correlacionadas entre si, permitirão identificar, por exemplo, o CEP de cada edificação, cidadão ou cidadã em situação de risco ou vulnerabilidade social, entre outras possibilidades. As chances de acertar o alvo com medidas corretivas e preventivas aumenta exponencialmente. O de melhorar a imagem também.
Isso sem falar dos ganhos possíveis no ordenamento do território ocupado pelas cidades. Como o controle da expansão urbana e o acompanhamento efetivo das diretrizes de desenvolvimento traçadas nos Planos Diretores. Enfim, ações básicas e elementares, mas indispensáveis para uma gestão inteligente e inclusiva de tudo que ocorre nas cidades e que se reflete de modo insofismável na sua imagem.
*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.