Vicente Loureiro
Antes da pandemia, era hábito para mais de um milhão de pessoas ir à cidade quase todos os dias. Não só os provenientes do próprio Rio, mas também de todos os municípios da região ca de muitas de suas sortidas ofertas de serviços e atrações comerciais, turísticas, culturais e, claro, de educação, saúde e lazer, entre outras.
Curioso esse costume de décadas da população dessa metrópole ao dizer “vou à cidade” ou “trabalho na cidade”, referindo-se a área central da cidade mãe da região. Quando os deslocamentos são dirigidos aos centros das outras cidades, essas mesmas pessoas utilizam expressões tipo: “vou lá fora”, “vou ao calçadão” ou, até mesmo, “vou a Caxias ou a Nova Iguaçu”, como se já lá não estivessem. Ir à cidade passou a valer até mesmo para visitas esporádicas. Faz tempo o “cuore” do Rio virou o centro de toda a região.
Caso nítido de escolha voluntária sem nenhuma imposição legal ou burocrática e que conseguiu atravessar incólume a mudança da então capital federal para Brasília. Não dando, inclusive, muita bola para a fusão da Guanabara com o Estado do Rio, pois já era praticada econômica e socialmente em larga escala. A água vinha de lá para cá. O lixo ia daqui para lá. As compras eram feitas lá, mas as notas fiscais tiradas aqui.
Indiferentes as tentativas e erros de se estabelecer governança sobre esse território em busca de mais justiça fiscal e distribuição mais equânime dos seus bens e serviços, os cariocas e fluminenses, juntos em sua sabedoria, cuidaram de dar nome próprio ao fenômeno, batizando desde então o centro metropolitano do Rio de Janeiro como sendo o das demais cidades da região.
Infelizmente, a maior parte dos governadores, prefeitos e formadores de opinião insistiram, nesse tempo todo, em negar ou não querer ver fato tão claramente percebido por suas excelências os moradores e promotores desse viver metropolitano. Não aprenderam a lição. Ignoraram ou ainda ignoram essa realidade cristalina, resultante de um processo geográfico impossível de ser separar. Nem transformando, no limite do absurdo, o Rio de Janeiro em um principado e construindo muralhas em suas divisas, ele deixará de ser uma megacidade de 13 milhões de vidas, com metabolismo complexo, onde já faz tempo as pessoas não sabem direito de onde vem a água potável, qual o destino dado aos esgotos ou mesmo em que lugar pode estar a fonte de sustento ou o abrigou de sua família.
Por essas e outras razões, o centro do Rio e os caminhos que levam a ele viraram ativos metropolitanos importantes, cujos destinos passaram a ser do interesse e responsabilidade de todos. Reinventá-los ou revivê-los, assim como deseja a prefeitura da cidade, merece apoio e participação de todos os níveis de governo, das empresas e da sociedade civil. Mesmo sabendo que os tempos são outros e ainda mais sombrios por conta dos estragos de uma nova crise econômica a castigar o país, agravada pelos impactos da pandemia, o centro do Rio pode nunca mais voltar a ser o mesmo. O que não quer dizer que não possa continuar exercendo esse magnetismo urbanístico para muito além de seus limites, incrivelmente renovável a cada dia. O relógio da central, um dos maiores do mundo com quatro faces e símbolo inconteste da vida metropolitano, precisa voltar a funcionar, marcando um novo tempo para região, onde a possiblidade de futuro ajude a aplacar o desejo de reinventar o passado.
*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista.