*Vicente Loureiro
As cidades continuam a ser inventadas ou reinventadas. Há quem acredite no seu sucesso, enquanto outros as observam com desdém. No entanto, elas seguem gerando fatos novos, e suas imagens não deixam dúvidas. Edifícios dos mais variados continuam surgindo em profusão, conformando, às vezes, paisagens icônicas. Quase sempre, esses empreendimentos são fruto dos chamados “Fatos do Príncipe” ou do desejo de algum governante visionário. Mais recentemente, empresas também têm assumido o papel de fazer essas cidades nascerem.
Independentemente de quem as produz, algumas cidades irão prosperar, enquanto outras poderão empacar já no início. Só o tempo, o verdadeiro construtor de cidades, definirá se elas se tornarão realidade ou apenas simulacros. Nessas cidades, haverá vida coletiva para acalentar sonhos e purgar situações de desconforto. Ocorrerão episódios extraordinários, e alguns lugares serão impregnados de significados e emoções. As oportunidades criadas nelas funcionarão como combustível, dando vida aos edifícios e fazendo as ruas pulsarem. Serão as pessoas que as transformarão em acontecimento urbano ou não.
Estou em Dubai, uma cidade inventada – ou quase. Ela nos faz refletir sobre seu futuro e o de outras cidades semelhantes, tão em voga neste lado do mundo. Em apenas 40 anos, um pedaço de deserto à beira-mar viu nascer quase um milhão de residências e muitos milhares de pontos de negócios, em um crescimento aparentemente contínuo e sem limites visíveis. Há muitos questionamentos a serem feitos, mas não se pode negar o fato concreto: e põe concreto nisso – Dubai é uma cidade.
Certamente não uma cidade como aquelas que tomamos como referência. Nela há muito ser feito. Não em termos de sua materialidade extraordinária, mas principalmente naquilo que emergirá da gente que a escolheu para fazer a vida. O que ainda não lhes é permitido pelo pulso firme dos que a comandam. Respira-se em Dubai uma incontornável sensação de que a cidade tem dono. Não exatamente um senhor feudal, mas sim um “mago” com o condão de domar oportunidades, alimentando sonhos enquanto restringe o exercício pleno da cidadania. Em Dubai a democracia não dá as cartas.
Os petrodólares financiaram e continuam a financiar o desenvolvimento desta cidade, onde milhões de expatriados vêm e vão em busca de um futuro, numa rotatividade proporcional à precariedade das relações de trabalho. Aqui, os shoppings são a principal oportunidade de encontros. Ainda assim, é possível, por exemplo, que os olhos de uma faxineira brasileira cruzem com os de um engenheiro indiano e, juntos, eles contraem uma espécie de “bodas renováveis”, sustentadas por um visto de permanência com validade anual. Em Dubai, até o amor pode ter prazo de validade.
Não há favelas em Dubai. Existem, porém, muitos apartamentos que funcionam como alojamentos, onde em dois quartos podem morar de oito a dez pessoas, ou até mais. São trabalhadores da construção civil, dos serviços de limpeza e de entrega, vindos do sudeste asiático, de várias regiões da África e até do Oriente Médio, que praticamente vegetam em Dubai. A esperança deles é voltar a ser o que já foram um dia – só que melhores. A razão de viver dessa gente é medida em remessas de dinheiro enviadas para suas famílias nos países de origem. Para eles, Dubai é muito mais uma passagem do que um destino.
Isso passa a impressão de que não se cultiva aqui o senso de pertencimento. Assim, o exercício pleno da cidadania fica ainda mais distante. A esperança é que o slogan mais difundido por aqui, “o impossível, é possível”, também faça a cidadania florescer.
*Vicente Loureiro é arquiteto e urbanista, doutorando pela Universidade de Lisboa e autor dos livros “Prosa Urbana” e “Tempo de Cidade”.